1.
Introdução
O relato do Gênesis é um texto
levado a questionamento e críticas pejorativas por inúmeras pessoas que desejam
o compreender a luz dos avanços científicos ou ainda para uma leitura
fundamentalista do seu texto. Mas, olhando-se o texto a luz de seu tempo e
ainda apontando os aspectos fundadores de sua elaboração poderemos fazer uma
análise mais atenta do que o texto tem a nos dizer e ensinar.
Tendo isto em vista, este trabalho
pretende em fazer uma apreciação, mesmo que a grosso modo, do contexto
histórico da elaboração do texto bíblico do Gênesis, destacando-se os dois
momentos de elaboração dos textos bíblicos; apontando as principais fontes
israelitas e não-israelitas e finalmente chegar a uma crítica e aprofundamento
sobre a questão da imagem de Deus no casal humano e a sua relação descrita de
diferentes modos no relato da criação; ainda apontaremos uma tentativa de
atualização e hermenêutica do texto para a atualidade.
Ressalta-se que não se tem a
pretensão de solucionar todas as questões sobre o texto, mas levantar
provocação que possam nos levar a aprofundamentos posteriores sobre as mesmas
temáticas.
2.
Contexto histórico
O contexto histórico influencia
diretamente na elaboração dos textos na Sagrada Escritura. Sendo assim, neste
primeiro tópico pretende-se expor uma análise geográfica e o contexto social no
qual os israelitas estavam vivendo e ainda as possíveis causas do
desenvolvimento do texto.
Devemos salientar antes que, no Novo
Testamento, todo o Pentateuco é atribuído a “Moisés”, muitas vezes recebendo o
título de “Livro da lei de Moisés”, porém em todo Pentateuco a figura de Moisés
é colocada em terceira pessoa e não na primeira. Constatando-se assim, que o
livro do o Pentateuco é um livro que destaca a importante e decisiva participação
de Moisés na história do povo de Israel e não um livro de sua própria autoria
empírica e direta[1].
2.1. Gênesis 1,1 – 2,4a
Tratando especificamente do Gênesis
e ainda mais propriamente do texto Gn 1,1 - 2,4a tem-se a informação que este
texto fora desenvolvido pela escola sacerdotal[2],
a qual tinha como intuito principal “salvaguardar e reforçar os sinais da
identidade do povo de Israel em perigo de extinção”[3].
O contexto em que se encontravam os que compilaram esse pensamento era do exílio
e pós-exílio[4].
Por volta do ano 578 a.C os babilônicos ocupam Jerusalém e, assim, se tem o
início do exílio (587 -538 a.C) para o povo judeu.[5]
Conforme
afirmamos, o seu processo do desenvolvimento se dá na Babilônia, no período do
exílio, com forte influência dos poemas da criação que os povos da Babilônia
traziam em sua cultura. O povo de Israel não tinha rei nem mesmo templo e para
manter sua identidade surgindo então a necessidade da escola sacerdotal elaborar
um discurso sobre a Criação, destacando a origem do mundo, do homem e ainda a
história de Israel.
Portanto, podemos constatar que o
contexto em que se encontravam os que desenvolveram esse relato da criação era
a Babilônia, no momento do Exílio e seu desejo principal, ao elaborarem o
relato bíblico, era manter a identidade do povo israelita.
2.2 Gênesis 2, 4b a 2, 25
Tratando-se do segundo[6]
relato sobre a criação Gn 2,4b-2,25, sabemos que foi elaborado por volta do
século X a.C pela chamada escola Javista[7].
Esta tradição nasce no Sul de Israel, no tempo do rei Salomão.[8]
Seu desejo é demonstrar que a salvação é para toda a humanidade.
Este relato tem influência dos mitos
mesopotâmicos. O autor utiliza elementos que pertenciam a seu mundo cultural.
Destacam-se dois poemas marcantes que influenciaram na elaboração deste texto
bíblico: Enuma elish e o poema de
Gilgamés[9].
Como nos poemas, este relato e todos elaborados pela escola Javista observam-se
a antropomorfização de Deus, o qual se interessa pelos problemas humanos e suas
dificuldades.[10]
Sendo
assim, podemos constatar que o contexto em que se encontravam era o da
monarquia israelita (Salomão), no Sul de Israel, por volta do século X. a.C. e
o desejo do redator era lembrar ao povo de Israel que sua história é uma
história de salvação para toda a humanidade.
É
fundamental ainda destacar que houve um último que redator que compilou o texto
Javista e Sacerdotal, por volta do século V a.C.:
As
duas tradições foram conjugadas pelo último redator (século V a.C) na narração
do dilúvio (cap. 6-8), enquanto aparecem entrelaçadas. Embora distintas, no
outros capítulos. Isto significa que o redator fez suas ambas as tradições,
aceitando a mensagem que transmite a seus destinatários na apresentação
catequética do relato das origens.[11]
3. As Escolas Javista e Sacerdotal
e suas fontes
Sabendo-se assim do contexto
histórico, podemos agora adentrar de modo mais direto nos redatores dos relatos
bíblicos que iremos analisar neste trabalho. Conforme dito são eles: Javista e
Sacerdotal. Porém, também será de fundamental importância observarmos com
atenção as fontes externas ao povo de Israel. Isto é, além das tradições orais,
estes relatos bíblicos do Gênesis receberam influências de relatos
mesopotâmicos e babilônicos.
3.1 Escolas Sacerdotal e Javista
3.1.1. Escola Sacerdotal
Esta escola sacerdotal (representada
pela letra P, alemão priesterkodex:
código sacerdotal) surgiu durante o exílio na Babilônia e foi iniciada por
sacerdotes, vinculados a Ezequiel. A redação final dos textos elaborados pela
escola sacerdotal se deu no tempo da missão e reforma de Esdras (por volta de
450 a.C), mas mesmo assim um redator sacerdotal pouco tempo depois dá o aspecto
final e definitivo no texto. Ele une as
tradições anteriores (Javista, Eloísta, Deuterônomista e Sacerdotal – JEDP),
formando assim, definitivamente o Pentateuco[12].
Conforme dito, a escola sacerdotal
quer manter a identidade do povo israelita, por isso elabora seus textos
destacando e lembrando os costumes de seu povo. Podemos observar, como exemplo,
a grande importância do sábado no texto que estudamos:
“Assim
foram concluídos o céu e a terra, com todo seu exército. Deus concluiu no
sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra
que fizera.” Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou
depois de toda a sua criação. Esta é a história do céu e da terra, quando foram
criados.”[13]
Como
é sabido, o sábado[14]
é um dia sagrado para o povo judeu, que estava sofrendo no exílio. Sendo assim,
o autor sagrado deve destacá-lo para lembrar que desde os primórdios da
humanidade Deus o guarda e pede que o homem o respeito como dia sagrado: “Deus
descansou de uma só vez por todas e convida sua criatura a descansar com ele.”[15].
Outro aspecto que a escola
sacerdotal destaca é transcendência de Deus em relação a toda a criação. Deus
cria e mostra seu poder por sua palavra: “igualmente destaca-se a
transcendência de Deus que cria por meio de sua palavra, sem misturar-se nem se
confundir em momento algum com a realidade criada”[16].
No relato da Criação 1,1 – 2.4a o autor sagrado sempre destaca Deus dando
ordens e manifestando seu poder criador. É pela palavra de Deus que acontece o
poder de Deus e ainda esse poder é sempre bom. Toda a visão sacerdotal destaca
a criação como uma obra positiva produzida por Deus.
O grupo sacerdotal ainda enfatiza a
benção Deus para os que ele cria. Deus concede, no Gênesis, a benção à criação
que tem vida e ordena a multiplicação: “sede fecundos, multiplicai-vos...”[17].
Podemos observar no texto que a benção para o ser humano inclui a altivez em
relação a terra e os seres vivos. O homem e a mulher são visto como a maior de
toda criação e devem dominar as demais[18].
3.1.2. Escola Javista
A escola Javista (representada pela
letra J) é chamada assim, devido ao uso do nome de Deus como YHWH. Esta escola
surge depois do longo período de transmissão oral, no reino de Judá entre os
anos de 850-750 a.C. Após a ruína do reino do norte (Israel) um redator decide
unificar os textos bíblicos dos Javistas e Eloístas, mas deve-se ter em conta
que utiliza o texto javista como documento base[19].
O objetivo do texto javista
encontrado em Gn. 2,4b – 2,25 é “demonstrar que a história de Israel é uma
história de salvação para toda a humanidade. E o faz, colocando antes da
história de Israel uma longa introdução sobre as origens do mundo e do homem”[20].
Continua-se a expressar Deus como ser onipotente e criador, porém nesta versão
se tem uma nacionalização de Deus e ainda um antropormofismo para fala d’Ele[21].
Além disso, por ser elaborado no contexto
da monarquia Salomônica ressalta sempre a Israel como povo escolhido, não
anulando a possibilidade dos outros povos receberem as bênçãos de YHWH, porém
são eles os escolhidos:
O
próprio Israel é aquele povo antes de todos abençoado, cabendo-lhe uma posição
determinante neste mundo. Os outros povos podem e devem partilhar das bênçãos
de Israel, de modo que seu próprio destino depende de sua atitude como relação
a ele. Trata-se daquele entrelaçamento indissociável que caracteriza a fé
javista, uma fé determinada pelo seu caráter nacional e alimentada pela ideia
de que existe para Israel uma situação fundamentalmente salvífica[22].
O texto Javista, portanto, é um
texto que aproxima mais Deus da humanidade do que o texto sacerdotal. Ao se
fazer uma análise do texto poder-se-á observar que o hagiógrafo sempre está
atento em mostrar Deus com atos propriamente humanos: “Então Iahweh Deus
modelou o homem como a argila do solo”[23];
“Iahweh Deus plantou um jardim em Éden”[24]
etc.
3.2 – Fontes externas: textos mesopotâmicos
e babilônicos
O texto que fala da criação Gênesis
não é um texto totalmente autônomo, surgido espontaneamente da mente de seu
autor. Ambos os textos surgiram em momentos de sofrimento que o povo Israelita
passava e, sendo assim, recebia de outros povos histórias, relatos e mitos
sobre questões que deparavam em momentos de angustia e sofrimento, como por
exemplo: “De onde viemos?”
Sendo assim, para uma compreensão
atenta do texto que estudamos devemos nos ater às fontes externas vindas da
mesopotâmia e também da Babilônia. Porém antes será importante destacarmos os
gêneros literários que foram escritos tais relatos.
Analisando os gêneros literários do
texto bíblico Gênesis 1-11, Cimosa afirma que
são utilizados neste relato a “linguagem
simbólica, que consiste em por ao lado de uma expressão de significado
completo, digamos, ‘realista’, outra obtida através de transposição mental, que
podemos chamar de simbílica.”[25]
Para ele, a linguagem utilizada no Gênesis é simbólica, pois não se está
criando uma história, mas mostrando-se de modo alegórico a experiência do povo
de Israel em ver seu Deus não só o libertador, mas também tendo-O como criador.
Existem outros autores que ainda afirmam este relato como uma saga[26]:
“história que constitui uma compilação de sagas de conteúdo mítico na qual se
pretende tratar de acontecimentos de natureza fundamental”[27].
Sabendo-se assim dos gêneros
literários utilizados nos textos podemos agora nos atermos as influências
externas recebidas para a elaboração do dois textos sobre a criação no Gênesis,
a saber: o poema babilônico da Criação e o poema de Gilgámes.
O poema Babilônico narra que no
início foram criados os deuses dos elementos primordiais. O deus mais hábil era
Ea que venceu Apsu. Outro deus, que foi criado das águas do mar, chamado Tiamat
reage e os deuses encarregam Marduk de vingar-se de Tiamat. Marduk vence e mata
Tiamat, dividindo-o em duas partes: com uma constitui o céu e com outra a terra
e o mar. O homem é criado, no mesmo relato, pelo deus Ea com o sangue de um
deus sacrificado, Kingu, tendo assim em suas veias o sangue de um deus decaído.
Ressalta-se que o homem é criado para servir os deuses[28].
Podemos observar que no texto Gn 1,
1 – 2,4a tem o mesmo local de criação: o céu e a terra, conforme a narração
após a morte e divisão de Tiamat. Além disso, a criação do homem provém de um
deus, assim como neste relato o homem e a mulher são criados à imagem e
semelhança de Deus. No texto bíblico se destacam diferença em relação ao poema,
mas uma das mais marcantes é a criação do homem como ser próprio, dotado de
liberdade, diferente do poema onde o homem é criado para servir os deuses.
Já o poema de Gilgamés, do século
XIV a. C, narra duas descrições de um jardim da felicidade: jardim da montanha e o jardim de Siduri, a deusa da vida. Este
é o primeiro poema que encerra o problema da morte. Ele descreve dois amigos:
Gilgamesh, rei de Uruk e Enkidu, um selvagem que conhecia a civilização. Este
último morre e Gilgamesh fica desgostoso e amedrontado e começa a procurar a
imortalidade. Gilgamesh atravessa as águas da morte e lá encontra um
antepassado, chamado Utnapshitin, considerado o herói do dilúvio (compara-se a
Noé), o qual lhe conta a história do dilúvio e ensina como encontrar a “planta
da vida”. Quando a encontra uma serpente rouba-lhe e foge. Conseqüentemente, o
homem deve morrer e a imortalidade ser-lhe-á inacessível.
Comparando-se ao texto bíblico do Gn
2,4b – 3, 24 podermos observar a presença do jardim, chamado no relato bíblico
de jardim do Éden. Este poema foi inspirador para a escolha da figura da
serpente que engana o homem e faz-lhe cair no caminho de morte. Ainda
poderíamos destacar a árvore da vida, no relato bíblico, e a planta da vida, no
poema. Ambos os textos expressam a uma guarda em relação a fonte da vida: No
poema, o homem deve atravessar as águas da morte, já no relato bíblico, após o
pecado a árvore da vida é protegida por querubins com espadas fulgurantes.
Deste modo, podemos observar a
grande influência das culturas que estava presente na história dos redatores
bíblicos. Sabemos que existiram outros poemas que estavam presentes na elaboração
dos textos bíblicos[29],
porém temos ciência também que estes foram os mais marcantes e influentes das
fontes Javistas e sacerdotais. Também pode-se acentuar o modo como são
elaborados os textos bíblicos, com as figuras de linguagem e constituídos como
sagas.
4. A necessidade do homem em não
estar só e a relação do homem e da mulher nos relatos da criação
O
relato da criação do ser humano aparece em dois momentos, no primeiro o homem e
a mulher são criados juntos à imagem e semelhança de Deus: “Deus criou o ser
humano[30]
à sua imagem, à imagem de Deus ele os criou, homem e mulher ele os criou”[31].
Já no segundo relato YHWH cria o homem (varão) primeiro, originado da argila e
depois vendo a necessidade do mesmo em ter uma companhia cria a mulher de sua
costela: “Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou a mulher”[32].
Ambos os relatos mostram a presença dos dois sexos na criação, destacando ainda
que eles foram criados pelo mesmo e único Deus.
Nesta etapa de nosso trabalho iremos
analisar primeiro a solidão do homem que é apontada pelo autor bíblico, mostrando
a necessidade que o homem ter uma companhia a sua altura. Logo depois,
pretendemos lembrar o primeiro relato, na ordem do texto final, que destaca a
criação da relação do ser humano como imagem de Deus.
4.1. “Não é bom que o homem esteja
só”
Conforme visto, este relato é desenvolvido
pela escola javista que expressa o origem de seu povo pelo poder e mão de YHWH.
Pretende-se observar, neste tópico, o porquê da afirmação da solidão humana e
da criação de uma companhia de mesmo nível.
O texto bíblico mostra que Deus
percebe a solidão humana, ao criá-lo. Mesmo mostrando-se que o homem está no
local de onde viera e para onde iria voltar: “proclama a profunda comunhão do
homem com a terra, sua origem, lar, tarefa e destino final de sua existência:
resposta à grande pergunta: de onde
viemos e para onde vamos?”[33].
O homem é percebido como só. YHWH ainda cria o jardim para o ser humano,
mostrando sua preocupação e seu desejo pela felicidade humana: “Este horto nada
tem a ver com o mundo vegetal do poema da Criação (Cf. Gn 1, 12), mas diz
respeito à preocupação divina em proporcionar à sua criatura um espaço onde
pudesse ser feliz.”[34].
Surge então a percepção da solidão
humana, por parte de Deus que afirma: “Não é bom que o ser humano esteja só.
Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda.”[35].
Deus mesmo constata a solidão humana, mostrando seu amor para com sua criação,
expressando que está disposto a ajudar de toda forma possível o ser humano. Ele
modela da terra, então, “todas as espécies de animais” desejando formar a
companhia para o ser humano. O termo modelar é usado aqui do mesmo modo que em
relação ao ser humano, mostrando-se assim que os animais são “irmãos do homem e
co-partícipes em um futuro paraíso”[36].
É de sua importância termos ciência que os animais não são como o ser humano e
o hagiógrafo destaca isso quando afirma que o ser humano é modelado do mesmo
modo que os animais o são, porém o ser humano recebe o sopro em suas narinas
com o hálito da vida: “insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se
tornou um ser vivente”[37].
Mesmo assim permanece a solidão
humana, pois o homem é superior aos animais, por este motivo pode dar-lhes
nome: “Deus reconhece que o homem tem suficiente autonomia e capacidade quase
criadora: por meio da linguagem indentifica-os e coloca-os no lugar que lhes
corresponde no universo.”[38].
Esta tensão leva a Deus formar a mulher, pois somente ela tem uma perfeita
igualdade com o homem:
A
narração da formação da mulher é em tudo igual à do homem. Mesmo que se diga
que ela foi tirada da costela de Adão, o autor não quer ensinar de onde ela
vem, mas o que é ela. A cena é precedida da criação dos animais e do homem que
lhes dá um nome (2,18-20). Assim, o homem exerce um domínio sobre os animais e
mostra sua superioridade, mas uma perfeita igualdade à mulher, como é dito
explicitamente no versículo 23.[39]
Ao se dizer que a mulher será uma
auxiliar não se está afirmando a menoridade da mulher, mas sim uma oposta
correspondente ao homem[40].
Isto é, alguém diferente, mas que seja capaz de completar esse vazio que está
no ser humano, por não encontrar alguém igual. O homem ao dar o nome à mulher
não está se colocando superior, visto esta superioridade só é dada por Deus,
ele apenas está expressando sua alegria em encontrar alguém que lhe seja
semelhante em tudo.
Portanto, a necessidade do homem é
expressa nesta narração bíblica. O homem sente-se só e Deus constata isso
dando-lhe uma companhia. Este relato bíblico vem expressar claramente que o ser
humano é um ser de relação e que carece da mesma. Ainda destaca a importância
da presença e completude da mulher na vida do homem (ressaltando o matrimônio,
como um bem dado ao ser humano).
4.2 – “Homem e mulher ele os criou”
Deus cria o ser humano e o modela a
sua imagem e semelhança, mostrando que o ser humano é a maior de todas suas
obras. Toda criação tem uma semelhança com Deus, porém o homem é à imagem e
semelhança e isso já o torna sua melhor imagem: “De fato, não há nada na
natureza que não guarde alguma semelhança com Deus[41]
e que não possa nos ajudar a concebê-la; todavia, tomada em sentido próprio, a
dignidade da imagem pertence somente ao homem”[42].
Tendo isto em vista, pretende-se analisar a afirmação do ser humano como homem
e mulher sendo imagem e semelhança de Deus.
Na narração bíblica é repetida por
três a palavra imagem: “Façamos o ser humano à nossa imagem [...] Deus criou o
ser humano à sua imagem, à imagem de Deus ele os criou, homem e mulher ele os
criou.”[43].
Segundo Torralba, essa citação indicada duas vezes refere-se ao modelo (que é o
próprio Deus) e a terceira ensina que a diferença entre os sexos pertence à
ordem divina e que essa diferença é algo bom, pois corresponde ao que o Criador
queria ao formá-los tais como são, sexuados, capazes de amar, de viver e dar
vida[44].
Ora, sendo assim, é do agrado de Deus que existe essa diferença e como já
podemos observar acima é somente homem e mulher que poderão se completar um ao
outro.
Ora, sabendo-se sobre o uso deste
termo imagem e que essa diferença sexual é do agrado de Deus, pode-se
questionar aqui, sobre o que vem a ser essa imagem de Deus no ser humano e
ainda mais particularmente na diferença sexual. Sobre isso, Leloup afirma que
No
pensamento judaico, o ser humano torna-se inteiro apenas em sua relação com o
outro. O Gênesis (1,27) afirma: ‘No começo, Deus criou o ser humano à sua
imagem, homem e mulher Ele os criou’. A expressão à imagem ‘à imagem de Deus’
não se refere apenas ao homem ou à mulher, mas à relação entre eles. O
conhecimento de Deus passa pelo relacionamento do homem com a mulher, pelo
encontro com o outro.[45]
O mesmo autor ainda lembra sobre a
tradição judaica e todos seus costumes que prezam pela valorização sua cultura.
Sendo o casamento uma instituição divina, o ser humano é chamado a vivê-lo do
melhor modo possível, seguindo as leis orientadas por YHWH:
N
tradição judaica – em particular, nos midraxes
-, insiste-se no fato de que um homem que não tenha conhecido uma mulher não
pode ser chamado de “humano”; e o mesmo ocorre em relação à mulher. E os
exegetas observam que, antes de encontrar a mulher – a alteridade –, o homem
masculino chamado Adão [Adam]; e,
depois do encontro, é chamado ha-adam
(o homem).[46]
Portanto, vê-se imagem e semelhança
neste texto não só em cada ser humano, mas sobretudo na relação entre os mesmos
de sexos oposto. O texto está dando destaque para a importante relação
existente entre o homem e a mulher que expressa a vontade de Deus em tê-los
como a sua imagem e semelhança.
6. Uma tentativa de atualização do texto
Ambos os relatos destacam a
importância que é dada ao ser humano por Deus que o cria com amor e ainda com
mais amor o acompanha, dando-lhe tudo o que necessita para sua existência. Sendo
o maior presente a diferença sexual que lembra a importância do outro na vida
de cada ser humano, mostrando sua presença e ajuda, isto é, completando-o.
No contexto atual, vivemos um momento
de crise que já está destacado no livro do Gênesis, a saber: a relação
matrimonial que, muitas vezes, não tem mais objetivo de viver os valores
cristãos e humanos; o individualismo contemporâneo o qual faz com que o ser
humano se feche para relações direta e concretamente com o outro.
No primeiro aspecto, o livro do
Gênesis destaca a importância da relação matrimonial a qual faz com que o ser
humano seja em plenitude imago Dei.
Muitos homens e mulheres não desejam viver a relação como momento privilegiado
para a continuação da criação: “Deus abençoou e lhes disse: ‘sede fecundos,
mutiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a’”[47],
mas vivem sim uma relação com o único objetivo de satisfação sexual. Ressalta-se
que não se está propondo aqui que o ser humano não tenha que viver o prazer de
suas relações afetivas e sexuais, mas que o viva em uma relação de
responsabilidade e respeito um para com o outro. O ser humano não pode ser
usado como objeto de satisfação sexual, mas como sujeito que pode gerar em uma
relação de amor e responsabilidade os mesmos prazeres.
No segundo aspecto, o livro do
Gênesis aponta a importância da relação direta e presente do ser humano. Todo
ser humano necessita do outro e, no relato que estudamos, o próprio Criador
constata isto: “Não é bom que o homem esteja só”[48].
Na contemporaneidade, muitas pessoas têm se fechado para as relações diretas,
principalmente pelos meios de comunicação social, gerando-se assim um modelo de
individualismo[49].
Ainda existem aqueles que vivem um individualismo que deseja sua própria
satisfação, mesmo que isso leve como conseqüência a infelicidade dos outros.
Neste sentido, o relato do Gênesis
vem apontar que o ser humano necessita de aproveitar e viver bem as relações
interpessoais. Cada ser é único, porém é somente o outro, em toda sua dignidade
humana, que pode completar a carência humana de relação. Por este motivo é que
se mostra a criação da mulher, pois é somente ela que faz com que o homem possa
se alegrar e poder compartilhar sua alegria.
Sendo assim, pode-se concluir este
texto apontando que todo relato e texto bíblico pode trazer, de forma
hermenêutica, grande riqueza para um estudo e aprofundamento das questões
humanas e fundamentais. O relato que estudamos, mostra claramente a importância
da criação do casal humano e da instituição do matrimônio. É do desejo de Deus
que o ser humano viva a suas relações afetivas de modo bem responsável e com
amor, que complete física, psíquica e espiritualmente um ao outro.
7. Referências bibliográficas
·
BÍBLIA DE JERUSALÉM, A. T. Genesis. 157.
6 ed. São Paulo: Paulus , 2010.
·
CIMOSA, Mario. Gênesis 1-11: A humanidade na sua origem. São Paulo: Paulinas,
1987. (sigla: CIMOSA, 1987, p.)
·
COMISSÃO EDITORIAL S.
G. OPORTO E M. S. GARCIA. Comentário ao
Antigo testamento I. São Paulo: Editora Ave- Maria, 2002:
a)
CARRASCO, Joaquín Menchén. Introdução Geral. (Sigla: CARRASCO, In:
Comentário ao AT I, 2002, p.)
b)
TORRALBA, Juán Guillén. Gênesis. (sigla: TORRALBA, In:
Comentário ao AT I, 2002, p.)
·
FOHRER, G; SELLIN, E. Introdução ao Antigo Testamento. São
Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda, 2007. (sigla: SELLIN e FOHRER, 2007, p.)
·
GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2006.
(Sigla: GILSON, 2006, p.)
·
KINDER, Derek. Gênesis: Introdução e comentário. Reimpressão. São Paulo: Sociedade
religiosa Edições Vida e Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1988. (
Sigla: KINDER, 1988, p.)
·
LELOUP, Jean-Yves. Jesus e Maria Madalena: Para os puros, tudo é puro. Petrópolis:
Vozes, 2007.
[1] Cf.
KIDNER, 1988, p.15.
[2] Trataremos mais propriamente
desta escola no tópico 3.1.1.
[3] CARRASCO in: Comentário ao AT I,
2002, p. 26.
[4] Cf. Idem, p. 17.
[5] Cf. CIMOSA, 1987, p.11.
[6] Na ordem que se tem após a
compilação no século V a.C, pois como poderemos ver este relato é anterior ao
citado acima.
[7] Trataremos mais propriamente
desta escola no tópico 3.1.2
[8] Op. Cit, p. 10
[9] Cf. TORRALBA in: Comentário ao
AT I, 2002, p. 43
[10] Cf. CIMOSA, 1987, p. 11
[11] CIMOSA, 1987, p. 10
[12] Cf. TORRALBA in: Comentário ao
AT I, 2002, p.17.
[13] Gn. 2, 1-2.
[14] O sábado é uma instituição
divina: o próprio Deus descansou (shabbat)
neste dia. Entretanto, o vocábulo shabbat
é evitado aqui, porque,segundo o autor sagrado, o sábado só será imposto no
Sinai, onde se tornará o sinal da aliança (Ex. 31, 12-17). Mas, desde a
criação, Deus deu um exemplo que o homem deverá imitar. Cf. Gn, 2,2 (N.T.)
[15] TORRALBA, In: Comentário ao AT
I, 2002, p.41.
[16]
CARRASCO, In: Op. Cit, p. 26.
[17] Gn 1, 22; 28.
[18] Cf. TORRALBA, In: Comentário ao
AT I, 2002, p. 40.
[19] Cf. CARRASCO. Op. Cit. p. 17
[20] CIMOSA, 1987, p. 10.
[21]Cf. CARRASCO, In: Comentário ao
AT I, 2002, p. 17.
[22] SELLIN e FOHRER, 2007, p.210.
[23] Gn 2, 7a.
[24] Gn 2, 8a
[25] CIMOSA, 1987, p. 15.
[26] As Sagas são contos que se ligam
a lugares, pessoas, costumes, modos de vida dos quais se quer explicar a
origem, o valor, o caráter sagrado de qualquer fenômeno que chama atenção. A
saga se chama etiológica quando procura a causa de um fenômeno.
[27] SELLIN e FOHRER, 2007,
p.125-126.
[28] Cf. CIMOSA, 1987, p. 16-17.
[29] Cf. CIMOSA, 1987, p. 16 – 22.
[30] Na tradução da Bíblia de
Jerusalém, citada aqui, utiliza-se o termo homem, porém observando o texto à
luz do pensamento de Leloup vemos que a melhor tradução se daria na
terminologia ser humano. (Cf. LELOUP, 2007, p. 34.)
[31] Gn. 1,27.
[32] Gn 2, 22.
[33] TORRALBA, In: Comentário ao AT
I, 2002, p.46.
[34] Idem
[35] Gn. 2,18.
[36] TORRALBA, In: Comentário ao AT
I, 2002, p.48.
[37] Gn. 2, 7b. É uma descrição
simbólica, que usa a antiga concepção semita, que distingue no homem três
elementos: um corpo (basar), uma personalidade
(nefesh) e um princípio vital (ruah ou nishmat). (Cf. CIMOSA, 1987, p.
37)
[38] TORRALBA, In: Comentário ao AT
I, 2002, p.48;
[39] CIMOSA, 1987, p. 42
[40] KIDNER, 1988, p. 61.
[41] Gilson emprega o termo Trindade,
porém para contextualizarmos e adaptarmos o texto mencionado ao trabalho aqui
realizado, decidimos usar o termo Deus, visto que quando se utiliza Trindade no
texto Gilson está se referindo ao mesmo Deus.
[42] GILSON, 2006, 416.
[43] Gn. 1,26 – 27.
[44] TORRALBA, In: Comentário ao AT
I, 2002, p.41.
[45] LELOUP, 2007, p. 34.
[46] Idem
[47]
Gn. 1, 28a
[48]
Gn. 2,18.
[49] Individualismo aqui não é
individualidade. Individualismo é o fechamento em si próprio, ou seja, um
solipsismo. Já individualidade é o destaque de que cada ser humano é único e
particular. A individualidade destaca a importância da relação pois o ser
humano necessidade de descobrir o outro para encontrar sua individualidade e,
assim, destacar a sua importância ao encontrar a do outro.