segunda-feira, 14 de maio de 2012

A necessidade humana de relação e o matrimônio como Imago Dei. no Gênesis





1.     Introdução
            O relato do Gênesis é um texto levado a questionamento e críticas pejorativas por inúmeras pessoas que desejam o compreender a luz dos avanços científicos ou ainda para uma leitura fundamentalista do seu texto. Mas, olhando-se o texto a luz de seu tempo e ainda apontando os aspectos fundadores de sua elaboração poderemos fazer uma análise mais atenta do que o texto tem a nos dizer e ensinar.
            Tendo isto em vista, este trabalho pretende em fazer uma apreciação, mesmo que a grosso modo, do contexto histórico da elaboração do texto bíblico do Gênesis, destacando-se os dois momentos de elaboração dos textos bíblicos; apontando as principais fontes israelitas e não-israelitas e finalmente chegar a uma crítica e aprofundamento sobre a questão da imagem de Deus no casal humano e a sua relação descrita de diferentes modos no relato da criação; ainda apontaremos uma tentativa de atualização e hermenêutica do texto para a atualidade.
            Ressalta-se que não se tem a pretensão de solucionar todas as questões sobre o texto, mas levantar provocação que possam nos levar a aprofundamentos posteriores sobre as mesmas temáticas.


2. Contexto histórico

            O contexto histórico influencia diretamente na elaboração dos textos na Sagrada Escritura. Sendo assim, neste primeiro tópico pretende-se expor uma análise geográfica e o contexto social no qual os israelitas estavam vivendo e ainda as possíveis causas do desenvolvimento do texto.
            Devemos salientar antes que, no Novo Testamento, todo o Pentateuco é atribuído a “Moisés”, muitas vezes recebendo o título de “Livro da lei de Moisés”, porém em todo Pentateuco a figura de Moisés é colocada em terceira pessoa e não na primeira. Constatando-se assim, que o livro do o Pentateuco é um livro que destaca a importante e decisiva participação de Moisés na história do povo de Israel e não um livro de sua própria autoria empírica e direta[1].

2.1. Gênesis 1,1 – 2,4a

            Tratando especificamente do Gênesis e ainda mais propriamente do texto Gn 1,1 - 2,4a tem-se a informação que este texto fora desenvolvido pela escola sacerdotal[2], a qual tinha como intuito principal “salvaguardar e reforçar os sinais da identidade do povo de Israel em perigo de extinção”[3]. O contexto em que se encontravam os que compilaram esse pensamento era do exílio e pós-exílio[4]. Por volta do ano 578 a.C os babilônicos ocupam Jerusalém e, assim, se tem o início do exílio (587 -538 a.C) para o povo judeu.[5]
Conforme afirmamos, o seu processo do desenvolvimento se dá na Babilônia, no período do exílio, com forte influência dos poemas da criação que os povos da Babilônia traziam em sua cultura. O povo de Israel não tinha rei nem mesmo templo e para manter sua identidade surgindo então a necessidade da escola sacerdotal elaborar um discurso sobre a Criação, destacando a origem do mundo, do homem e ainda a história de Israel.
            Portanto, podemos constatar que o contexto em que se encontravam os que desenvolveram esse relato da criação era a Babilônia, no momento do Exílio e seu desejo principal, ao elaborarem o relato bíblico, era manter a identidade do povo israelita.

2.2 Gênesis 2, 4b a 2, 25

            Tratando-se do segundo[6] relato sobre a criação Gn 2,4b-2,25, sabemos que foi elaborado por volta do século X a.C pela chamada escola Javista[7]. Esta tradição nasce no Sul de Israel, no tempo do rei Salomão.[8] Seu desejo é demonstrar que a salvação é para toda a humanidade.
            Este relato tem influência dos mitos mesopotâmicos. O autor utiliza elementos que pertenciam a seu mundo cultural. Destacam-se dois poemas marcantes que influenciaram na elaboração deste texto bíblico: Enuma elish e o poema de Gilgamés[9]. Como nos poemas, este relato e todos elaborados pela escola Javista observam-se a antropomorfização de Deus, o qual se interessa pelos problemas humanos e suas dificuldades.[10]
Sendo assim, podemos constatar que o contexto em que se encontravam era o da monarquia israelita (Salomão), no Sul de Israel, por volta do século X. a.C. e o desejo do redator era lembrar ao povo de Israel que sua história é uma história de salvação para toda a humanidade.
            É fundamental ainda destacar que houve um último que redator que compilou o texto Javista e Sacerdotal, por volta do século V a.C.:
As duas tradições foram conjugadas pelo último redator (século V a.C) na narração do dilúvio (cap. 6-8), enquanto aparecem entrelaçadas. Embora distintas, no outros capítulos. Isto significa que o redator fez suas ambas as tradições, aceitando a mensagem que transmite a seus destinatários na apresentação catequética do relato das origens.[11]

3. As Escolas Javista e Sacerdotal e suas fontes

            Sabendo-se assim do contexto histórico, podemos agora adentrar de modo mais direto nos redatores dos relatos bíblicos que iremos analisar neste trabalho. Conforme dito são eles: Javista e Sacerdotal. Porém, também será de fundamental importância observarmos com atenção as fontes externas ao povo de Israel. Isto é, além das tradições orais, estes relatos bíblicos do Gênesis receberam influências de relatos mesopotâmicos e babilônicos.

3.1 Escolas Sacerdotal e Javista

3.1.1. Escola Sacerdotal

            Esta escola sacerdotal (representada pela letra P, alemão priesterkodex: código sacerdotal) surgiu durante o exílio na Babilônia e foi iniciada por sacerdotes, vinculados a Ezequiel. A redação final dos textos elaborados pela escola sacerdotal se deu no tempo da missão e reforma de Esdras (por volta de 450 a.C), mas mesmo assim um redator sacerdotal pouco tempo depois dá o aspecto final e definitivo no texto.  Ele une as tradições anteriores (Javista, Eloísta, Deuterônomista e Sacerdotal – JEDP), formando assim, definitivamente o Pentateuco[12].
            Conforme dito, a escola sacerdotal quer manter a identidade do povo israelita, por isso elabora seus textos destacando e lembrando os costumes de seu povo. Podemos observar, como exemplo, a grande importância do sábado no texto que estudamos:
“Assim foram concluídos o céu e a terra, com todo seu exército. Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra que fizera.” Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois de toda a sua criação. Esta é a história do céu e da terra, quando foram criados.”[13]
Como é sabido, o sábado[14] é um dia sagrado para o povo judeu, que estava sofrendo no exílio. Sendo assim, o autor sagrado deve destacá-lo para lembrar que desde os primórdios da humanidade Deus o guarda e pede que o homem o respeito como dia sagrado: “Deus descansou de uma só vez por todas e convida sua criatura a descansar com ele.”[15].
            Outro aspecto que a escola sacerdotal destaca é transcendência de Deus em relação a toda a criação. Deus cria e mostra seu poder por sua palavra: “igualmente destaca-se a transcendência de Deus que cria por meio de sua palavra, sem misturar-se nem se confundir em momento algum com a realidade criada”[16]. No relato da Criação 1,1 – 2.4a o autor sagrado sempre destaca Deus dando ordens e manifestando seu poder criador. É pela palavra de Deus que acontece o poder de Deus e ainda esse poder é sempre bom. Toda a visão sacerdotal destaca a criação como uma obra positiva produzida por Deus.
            O grupo sacerdotal ainda enfatiza a benção Deus para os que ele cria. Deus concede, no Gênesis, a benção à criação que tem vida e ordena a multiplicação: “sede fecundos, multiplicai-vos...”[17]. Podemos observar no texto que a benção para o ser humano inclui a altivez em relação a terra e os seres vivos. O homem e a mulher são visto como a maior de toda criação e devem dominar as demais[18].

3.1.2. Escola Javista

            A escola Javista (representada pela letra J) é chamada assim, devido ao uso do nome de Deus como YHWH. Esta escola surge depois do longo período de transmissão oral, no reino de Judá entre os anos de 850-750 a.C. Após a ruína do reino do norte (Israel) um redator decide unificar os textos bíblicos dos Javistas e Eloístas, mas deve-se ter em conta que utiliza o texto javista como documento base[19].
            O objetivo do texto javista encontrado em Gn. 2,4b – 2,25 é “demonstrar que a história de Israel é uma história de salvação para toda a humanidade. E o faz, colocando antes da história de Israel uma longa introdução sobre as origens do mundo e do homem”[20]. Continua-se a expressar Deus como ser onipotente e criador, porém nesta versão se tem uma nacionalização de Deus e ainda um antropormofismo para fala d’Ele[21].
            Além disso, por ser elaborado no contexto da monarquia Salomônica ressalta sempre a Israel como povo escolhido, não anulando a possibilidade dos outros povos receberem as bênçãos de YHWH, porém são eles os escolhidos:
O próprio Israel é aquele povo antes de todos abençoado, cabendo-lhe uma posição determinante neste mundo. Os outros povos podem e devem partilhar das bênçãos de Israel, de modo que seu próprio destino depende de sua atitude como relação a ele. Trata-se daquele entrelaçamento indissociável que caracteriza a fé javista, uma fé determinada pelo seu caráter nacional e alimentada pela ideia de que existe para Israel uma situação fundamentalmente salvífica[22].
            O texto Javista, portanto, é um texto que aproxima mais Deus da humanidade do que o texto sacerdotal. Ao se fazer uma análise do texto poder-se-á observar que o hagiógrafo sempre está atento em mostrar Deus com atos propriamente humanos: “Então Iahweh Deus modelou o homem como a argila do solo”[23]; “Iahweh Deus plantou um jardim em Éden”[24] etc.

3.2 – Fontes externas: textos mesopotâmicos e babilônicos

            O texto que fala da criação Gênesis não é um texto totalmente autônomo, surgido espontaneamente da mente de seu autor. Ambos os textos surgiram em momentos de sofrimento que o povo Israelita passava e, sendo assim, recebia de outros povos histórias, relatos e mitos sobre questões que deparavam em momentos de angustia e sofrimento, como por exemplo: “De onde viemos?”
            Sendo assim, para uma compreensão atenta do texto que estudamos devemos nos ater às fontes externas vindas da mesopotâmia e também da Babilônia. Porém antes será importante destacarmos os gêneros literários que foram escritos tais relatos.
            Analisando os gêneros literários do texto bíblico Gênesis 1-11, Cimosa afirma que  são utilizados neste relato a “linguagem simbólica, que consiste em por ao lado de uma expressão de significado completo, digamos, ‘realista’, outra obtida através de transposição mental, que podemos chamar de simbílica.”[25] Para ele, a linguagem utilizada no Gênesis é simbólica, pois não se está criando uma história, mas mostrando-se de modo alegórico a experiência do povo de Israel em ver seu Deus não só o libertador, mas também tendo-O como criador. Existem outros autores que ainda afirmam este relato como uma saga[26]: “história que constitui uma compilação de sagas de conteúdo mítico na qual se pretende tratar de acontecimentos de natureza fundamental”[27].
            Sabendo-se assim dos gêneros literários utilizados nos textos podemos agora nos atermos as influências externas recebidas para a elaboração do dois textos sobre a criação no Gênesis, a saber: o poema babilônico da Criação e o poema de Gilgámes.
            O poema Babilônico narra que no início foram criados os deuses dos elementos primordiais. O deus mais hábil era Ea que venceu Apsu. Outro deus, que foi criado das águas do mar, chamado Tiamat reage e os deuses encarregam Marduk de vingar-se de Tiamat. Marduk vence e mata Tiamat, dividindo-o em duas partes: com uma constitui o céu e com outra a terra e o mar. O homem é criado, no mesmo relato, pelo deus Ea com o sangue de um deus sacrificado, Kingu, tendo assim em suas veias o sangue de um deus decaído. Ressalta-se que o homem é criado para servir os deuses[28].
            Podemos observar que no texto Gn 1, 1 – 2,4a tem o mesmo local de criação: o céu e a terra, conforme a narração após a morte e divisão de Tiamat. Além disso, a criação do homem provém de um deus, assim como neste relato o homem e a mulher são criados à imagem e semelhança de Deus. No texto bíblico se destacam diferença em relação ao poema, mas uma das mais marcantes é a criação do homem como ser próprio, dotado de liberdade, diferente do poema onde o homem é criado para servir os deuses.
            Já o poema de Gilgamés, do século XIV a. C, narra duas descrições de um jardim da felicidade: jardim da montanha e o jardim de Siduri, a deusa da vida. Este é o primeiro poema que encerra o problema da morte. Ele descreve dois amigos: Gilgamesh, rei de Uruk e Enkidu, um selvagem que conhecia a civilização. Este último morre e Gilgamesh fica desgostoso e amedrontado e começa a procurar a imortalidade. Gilgamesh atravessa as águas da morte e lá encontra um antepassado, chamado Utnapshitin, considerado o herói do dilúvio (compara-se a Noé), o qual lhe conta a história do dilúvio e ensina como encontrar a “planta da vida”. Quando a encontra uma serpente rouba-lhe e foge. Conseqüentemente, o homem deve morrer e a imortalidade ser-lhe-á inacessível.
            Comparando-se ao texto bíblico do Gn 2,4b – 3, 24 podermos observar a presença do jardim, chamado no relato bíblico de jardim do Éden. Este poema foi inspirador para a escolha da figura da serpente que engana o homem e faz-lhe cair no caminho de morte. Ainda poderíamos destacar a árvore da vida, no relato bíblico, e a planta da vida, no poema. Ambos os textos expressam a uma guarda em relação a fonte da vida: No poema, o homem deve atravessar as águas da morte, já no relato bíblico, após o pecado a árvore da vida é protegida por querubins com espadas fulgurantes.
            Deste modo, podemos observar a grande influência das culturas que estava presente na história dos redatores bíblicos. Sabemos que existiram outros poemas que estavam presentes na elaboração dos textos bíblicos[29], porém temos ciência também que estes foram os mais marcantes e influentes das fontes Javistas e sacerdotais. Também pode-se acentuar o modo como são elaborados os textos bíblicos, com as figuras de linguagem e constituídos como sagas.

4. A necessidade do homem em não estar só e a relação do homem e da mulher nos relatos da criação

O relato da criação do ser humano aparece em dois momentos, no primeiro o homem e a mulher são criados juntos à imagem e semelhança de Deus: “Deus criou o ser humano[30] à sua imagem, à imagem de Deus ele os criou, homem e mulher ele os criou”[31]. Já no segundo relato YHWH cria o homem (varão) primeiro, originado da argila e depois vendo a necessidade do mesmo em ter uma companhia cria a mulher de sua costela: “Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou a mulher”[32]. Ambos os relatos mostram a presença dos dois sexos na criação, destacando ainda que eles foram criados pelo mesmo e único Deus.
            Nesta etapa de nosso trabalho iremos analisar primeiro a solidão do homem que é apontada pelo autor bíblico, mostrando a necessidade que o homem ter uma companhia a sua altura. Logo depois, pretendemos lembrar o primeiro relato, na ordem do texto final, que destaca a criação da relação do ser humano como imagem de Deus.
4.1. “Não é bom que o homem esteja só”
            Conforme visto, este relato é desenvolvido pela escola javista que expressa o origem de seu povo pelo poder e mão de YHWH. Pretende-se observar, neste tópico, o porquê da afirmação da solidão humana e da criação de uma companhia de mesmo nível.
            O texto bíblico mostra que Deus percebe a solidão humana, ao criá-lo. Mesmo mostrando-se que o homem está no local de onde viera e para onde iria voltar: “proclama a profunda comunhão do homem com a terra, sua origem, lar, tarefa e destino final de sua existência: resposta à grande pergunta: de onde viemos e para onde vamos?[33]. O homem é percebido como só. YHWH ainda cria o jardim para o ser humano, mostrando sua preocupação e seu desejo pela felicidade humana: “Este horto nada tem a ver com o mundo vegetal do poema da Criação (Cf. Gn 1, 12), mas diz respeito à preocupação divina em proporcionar à sua criatura um espaço onde pudesse ser feliz.”[34].
            Surge então a percepção da solidão humana, por parte de Deus que afirma: “Não é bom que o ser humano esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda.”[35]. Deus mesmo constata a solidão humana, mostrando seu amor para com sua criação, expressando que está disposto a ajudar de toda forma possível o ser humano. Ele modela da terra, então, “todas as espécies de animais” desejando formar a companhia para o ser humano. O termo modelar é usado aqui do mesmo modo que em relação ao ser humano, mostrando-se assim que os animais são “irmãos do homem e co-partícipes em um futuro paraíso”[36]. É de sua importância termos ciência que os animais não são como o ser humano e o hagiógrafo destaca isso quando afirma que o ser humano é modelado do mesmo modo que os animais o são, porém o ser humano recebe o sopro em suas narinas com o hálito da vida: “insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente”[37].
            Mesmo assim permanece a solidão humana, pois o homem é superior aos animais, por este motivo pode dar-lhes nome: “Deus reconhece que o homem tem suficiente autonomia e capacidade quase criadora: por meio da linguagem indentifica-os e coloca-os no lugar que lhes corresponde no universo.”[38]. Esta tensão leva a Deus formar a mulher, pois somente ela tem uma perfeita igualdade com o homem:
A narração da formação da mulher é em tudo igual à do homem. Mesmo que se diga que ela foi tirada da costela de Adão, o autor não quer ensinar de onde ela vem, mas o que é ela. A cena é precedida da criação dos animais e do homem que lhes dá um nome (2,18-20). Assim, o homem exerce um domínio sobre os animais e mostra sua superioridade, mas uma perfeita igualdade à mulher, como é dito explicitamente no versículo 23.[39]
            Ao se dizer que a mulher será uma auxiliar não se está afirmando a menoridade da mulher, mas sim uma oposta correspondente ao homem[40]. Isto é, alguém diferente, mas que seja capaz de completar esse vazio que está no ser humano, por não encontrar alguém igual. O homem ao dar o nome à mulher não está se colocando superior, visto esta superioridade só é dada por Deus, ele apenas está expressando sua alegria em encontrar alguém que lhe seja semelhante em tudo.
            Portanto, a necessidade do homem é expressa nesta narração bíblica. O homem sente-se só e Deus constata isso dando-lhe uma companhia. Este relato bíblico vem expressar claramente que o ser humano é um ser de relação e que carece da mesma. Ainda destaca a importância da presença e completude da mulher na vida do homem (ressaltando o matrimônio, como um bem dado ao ser humano).

4.2 – “Homem e mulher ele os criou”

            Deus cria o ser humano e o modela a sua imagem e semelhança, mostrando que o ser humano é a maior de todas suas obras. Toda criação tem uma semelhança com Deus, porém o homem é à imagem e semelhança e isso já o torna sua melhor imagem: “De fato, não há nada na natureza que não guarde alguma semelhança com Deus[41] e que não possa nos ajudar a concebê-la; todavia, tomada em sentido próprio, a dignidade da imagem pertence somente ao homem”[42]. Tendo isto em vista, pretende-se analisar a afirmação do ser humano como homem e mulher sendo imagem e semelhança de Deus.
            Na narração bíblica é repetida por três a palavra imagem: “Façamos o ser humano à nossa imagem [...] Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus ele os criou, homem e mulher ele os criou.”[43]. Segundo Torralba, essa citação indicada duas vezes refere-se ao modelo (que é o próprio Deus) e a terceira ensina que a diferença entre os sexos pertence à ordem divina e que essa diferença é algo bom, pois corresponde ao que o Criador queria ao formá-los tais como são, sexuados, capazes de amar, de viver e dar vida[44]. Ora, sendo assim, é do agrado de Deus que existe essa diferença e como já podemos observar acima é somente homem e mulher que poderão se completar um ao outro.
            Ora, sabendo-se sobre o uso deste termo imagem e que essa diferença sexual é do agrado de Deus, pode-se questionar aqui, sobre o que vem a ser essa imagem de Deus no ser humano e ainda mais particularmente na diferença sexual. Sobre isso, Leloup afirma que
No pensamento judaico, o ser humano torna-se inteiro apenas em sua relação com o outro. O Gênesis (1,27) afirma: ‘No começo, Deus criou o ser humano à sua imagem, homem e mulher Ele os criou’. A expressão à imagem ‘à imagem de Deus’ não se refere apenas ao homem ou à mulher, mas à relação entre eles. O conhecimento de Deus passa pelo relacionamento do homem com a mulher, pelo encontro com o outro.[45]
            O mesmo autor ainda lembra sobre a tradição judaica e todos seus costumes que prezam pela valorização sua cultura. Sendo o casamento uma instituição divina, o ser humano é chamado a vivê-lo do melhor modo possível, seguindo as leis orientadas por YHWH:
N tradição judaica – em particular, nos midraxes -, insiste-se no fato de que um homem que não tenha conhecido uma mulher não pode ser chamado de “humano”; e o mesmo ocorre em relação à mulher. E os exegetas observam que, antes de encontrar a mulher – a alteridade –, o homem masculino chamado Adão [Adam]; e, depois do encontro, é chamado ha-adam (o homem).[46]
            Portanto, vê-se imagem e semelhança neste texto não só em cada ser humano, mas sobretudo na relação entre os mesmos de sexos oposto. O texto está dando destaque para a importante relação existente entre o homem e a mulher que expressa a vontade de Deus em tê-los como a sua imagem e semelhança.

6.  Uma tentativa de atualização do texto

            Ambos os relatos destacam a importância que é dada ao ser humano por Deus que o cria com amor e ainda com mais amor o acompanha, dando-lhe tudo o que necessita para sua existência. Sendo o maior presente a diferença sexual que lembra a importância do outro na vida de cada ser humano, mostrando sua presença e ajuda, isto é, completando-o.
            No contexto atual, vivemos um momento de crise que já está destacado no livro do Gênesis, a saber: a relação matrimonial que, muitas vezes, não tem mais objetivo de viver os valores cristãos e humanos; o individualismo contemporâneo o qual faz com que o ser humano se feche para relações direta e concretamente com o outro.
            No primeiro aspecto, o livro do Gênesis destaca a importância da relação matrimonial a qual faz com que o ser humano seja em plenitude imago Dei. Muitos homens e mulheres não desejam viver a relação como momento privilegiado para a continuação da criação: “Deus abençoou e lhes disse: ‘sede fecundos, mutiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a’”[47], mas vivem sim uma relação com o único objetivo de satisfação sexual. Ressalta-se que não se está propondo aqui que o ser humano não tenha que viver o prazer de suas relações afetivas e sexuais, mas que o viva em uma relação de responsabilidade e respeito um para com o outro. O ser humano não pode ser usado como objeto de satisfação sexual, mas como sujeito que pode gerar em uma relação de amor e responsabilidade os mesmos prazeres.
            No segundo aspecto, o livro do Gênesis aponta a importância da relação direta e presente do ser humano. Todo ser humano necessita do outro e, no relato que estudamos, o próprio Criador constata isto: “Não é bom que o homem esteja só”[48]. Na contemporaneidade, muitas pessoas têm se fechado para as relações diretas, principalmente pelos meios de comunicação social, gerando-se assim um modelo de individualismo[49]. Ainda existem aqueles que vivem um individualismo que deseja sua própria satisfação, mesmo que isso leve como conseqüência a infelicidade dos outros.
            Neste sentido, o relato do Gênesis vem apontar que o ser humano necessita de aproveitar e viver bem as relações interpessoais. Cada ser é único, porém é somente o outro, em toda sua dignidade humana, que pode completar a carência humana de relação. Por este motivo é que se mostra a criação da mulher, pois é somente ela que faz com que o homem possa se alegrar e poder compartilhar sua alegria.
            Sendo assim, pode-se concluir este texto apontando que todo relato e texto bíblico pode trazer, de forma hermenêutica, grande riqueza para um estudo e aprofundamento das questões humanas e fundamentais. O relato que estudamos, mostra claramente a importância da criação do casal humano e da instituição do matrimônio. É do desejo de Deus que o ser humano viva a suas relações afetivas de modo bem responsável e com amor, que complete física, psíquica e espiritualmente um ao outro. 
7. Referências bibliográficas
·        BÍBLIA DE JERUSALÉM, A. T. Genesis. 157. 6 ed. São Paulo: Paulus , 2010.
·        CIMOSA, Mario. Gênesis 1-11: A humanidade na sua origem. São Paulo: Paulinas, 1987. (sigla: CIMOSA, 1987, p.)
·         COMISSÃO EDITORIAL S. G. OPORTO E M. S. GARCIA. Comentário ao Antigo testamento I. São Paulo: Editora Ave- Maria, 2002:
a)      CARRASCO, Joaquín Menchén. Introdução Geral. (Sigla: CARRASCO, In: Comentário ao AT I, 2002, p.)
b)     TORRALBA, Juán Guillén. Gênesis. (sigla: TORRALBA, In: Comentário ao AT I, 2002, p.)
·        FOHRER, G; SELLIN, E. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda, 2007. (sigla: SELLIN e FOHRER, 2007, p.)
·         GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2006. (Sigla: GILSON, 2006, p.)
·        KINDER, Derek. Gênesis: Introdução e comentário. Reimpressão. São Paulo: Sociedade religiosa Edições Vida e Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1988. ( Sigla: KINDER, 1988, p.)
·        LELOUP, Jean-Yves. Jesus e Maria Madalena: Para os puros, tudo é puro. Petrópolis: Vozes, 2007.


[1] Cf. KIDNER, 1988, p.15.
[2] Trataremos mais propriamente desta escola no tópico  3.1.1.
[3] CARRASCO in: Comentário ao AT I, 2002,  p. 26.
[4] Cf. Idem, p. 17.
[5] Cf. CIMOSA, 1987, p.11.
[6] Na ordem que se tem após a compilação no século V a.C, pois como poderemos ver este relato é anterior ao citado acima.
[7] Trataremos mais propriamente desta escola no tópico 3.1.2
[8] Op. Cit, p. 10
[9] Cf. TORRALBA in: Comentário ao AT I, 2002, p. 43
[10] Cf. CIMOSA, 1987, p. 11
[11] CIMOSA, 1987, p. 10
[12] Cf. TORRALBA in: Comentário ao AT I, 2002, p.17.
[13] Gn. 2, 1-2.
[14] O sábado é uma instituição divina: o próprio Deus descansou (shabbat) neste dia. Entretanto, o vocábulo shabbat é evitado aqui, porque,segundo o autor sagrado, o sábado só será imposto no Sinai, onde se tornará o sinal da aliança (Ex. 31, 12-17). Mas, desde a criação, Deus deu um exemplo que o homem deverá imitar. Cf. Gn, 2,2 (N.T.)
[15] TORRALBA, In: Comentário ao AT I, 2002, p.41.
[16] CARRASCO, In: Op. Cit, p. 26.
[17] Gn 1, 22; 28.
[18] Cf. TORRALBA, In: Comentário ao AT I, 2002, p. 40.
[19] Cf. CARRASCO. Op. Cit. p. 17
[20] CIMOSA, 1987, p. 10.
[21]Cf. CARRASCO, In: Comentário ao AT I, 2002, p. 17.
[22] SELLIN e FOHRER, 2007, p.210.
[23] Gn 2, 7a.
[24] Gn 2, 8a
[25] CIMOSA, 1987, p. 15.
[26] As Sagas são contos que se ligam a lugares, pessoas, costumes, modos de vida dos quais se quer explicar a origem, o valor, o caráter sagrado de qualquer fenômeno que chama atenção. A saga se chama etiológica quando procura a causa de um fenômeno.
[27] SELLIN e FOHRER, 2007, p.125-126.
[28] Cf. CIMOSA, 1987, p. 16-17.
[29] Cf. CIMOSA, 1987, p. 16 – 22.
[30] Na tradução da Bíblia de Jerusalém, citada aqui, utiliza-se o termo homem, porém observando o texto à luz do pensamento de Leloup vemos que a melhor tradução se daria na terminologia ser humano. (Cf. LELOUP, 2007, p. 34.)
[31] Gn. 1,27.
[32] Gn 2, 22.
[33] TORRALBA, In: Comentário ao AT I, 2002, p.46.
[34] Idem
[35] Gn. 2,18.
[36] TORRALBA, In: Comentário ao AT I, 2002, p.48.
[37] Gn. 2, 7b. É uma descrição simbólica, que usa a antiga concepção semita, que distingue no homem três elementos: um corpo (basar), uma personalidade (nefesh) e um princípio vital (ruah ou nishmat). (Cf. CIMOSA, 1987, p. 37)
[38] TORRALBA, In: Comentário ao AT I, 2002, p.48;
[39] CIMOSA, 1987, p. 42
[40] KIDNER, 1988, p. 61.
[41] Gilson emprega o termo Trindade, porém para contextualizarmos e adaptarmos o texto mencionado ao trabalho aqui realizado, decidimos usar o termo Deus, visto que quando se utiliza Trindade no texto Gilson está se referindo ao mesmo Deus.
[42] GILSON, 2006, 416.
[43] Gn. 1,26 – 27.
[44] TORRALBA, In: Comentário ao AT I, 2002, p.41.
[45] LELOUP, 2007, p. 34.
[46] Idem
[47] Gn. 1, 28a
[48] Gn. 2,18.
[49] Individualismo aqui não é individualidade. Individualismo é o fechamento em si próprio, ou seja, um solipsismo. Já individualidade é o destaque de que cada ser humano é único e particular. A individualidade destaca a importância da relação pois o ser humano necessidade de descobrir o outro para encontrar sua individualidade e, assim, destacar a sua importância ao encontrar a do outro.

O ser humano: Imagem de Deus Gn 1,26-27.



           
            No gênesis se encontram dois relatos da criação, nos quais se expressam duas tradições, a saber: a escola Javista e a escola Sacerdotal. No relato da escola  Sacerdotal tem-se a afirmação do ser humano como imagem de Deus, ou seja, o ser humano é criado de forma diferente das demais criaturas. Tendo em vista isto, este trabalho pretende, de forma bem sucinta, analisar esta afirmação, dando destaque para o que ela vem ressaltar na relação do homem e Deus.
            Segundo Mons. Celso, a criação do ser humano é o ápice desse discurso da criação[1]. No relato, ao se afirmar a criação do ser humano tem-se uma mudança esquemática. Isto é, nas criações anteriores era utilizada, pelo hagiógrafo, a ordem e criação (“e Deus disse e assim se fez”); já na criação do ser humano, Deus toma a decisão de criar: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança”[2]. O hagiógrafo se vale de um plural deliberativo, onde Deus fala consigo mesmo e nesse monólogo Deus decide criar o ser humano a sua imagem e semelhança.
            Este aspecto da imagem de Deus dá ao ser humano a possibilidade de diálogo e relação com Deus. Ao se tornar imagem e semelhança de Deus, o homem não está se tornando um deus, mas um ser superior entre todas as criaturas criadas. O ser imagem e semelhança de Deus abre a possibilidade para a afirmação que é feita pelo hagiógrafo logo depois da deliberação de Deus: “e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”[3]. Ou seja, ao se tornar imagem de Deus o ser humano domina sobre todas as criaturas, mas não deixa de ser uma delas: “o homem inteiro, como personalidade completa, tinha a imagem de Deus, que se manifesta sobretudo na faculdade de dominar sobre as criaturas”[4].
            Sendo assim, ao se tornar superior às demais criaturas o homem precisa de uma relação com Deus, na qual ele pode manter viva sua responsabilidade de domínio e cuidado sobre toda a criação e até sobre si mesmo. É nessa relação com Deus que o homem e a mulher são capazes de atingir a sua verdadeira condição, de imagem e semelhança de Deus e ainda assumir seu verdadeiro lugar: criatura escolhida e criada por Deus, à sua imagem e semelhança.

Referências bibliográficas
·        BÍBLIA DE JERUSALÉM, A. T. Genesis. 157. 6 ed. São Paulo: Paulus , 2010.
·         REIS. Mons. Celso Murilo Sousa. Apostila do Pentateuco.


[1] Cf. Reis, p.47.
[2] Gn 1, 26a
[3] Gn 1, 26b
[4] Reis, p.47.